21 de Setembro de 2005


"É impossível alguém estar mais cansada do que eu estou. Sinto-me doente. DOENTE. Seja o que for, parece-me estar no limite. Não sei quanto tempo mais me aguento."

Penso eu assim enquanto me preparo para dormir. Fazer alguma coisa, nem que seja ver televisão é completamente impensável.

Dormir. Só me apetece dormir. Muito.

Batem à porta e eu não quero ver ninguém. O João diz-me que é o Dr. Miguel. Levanto-me da cama e arrasto-me até à sala onde o encontro pálido e visivelmente nervoso.

- Abigail, telefonaram-me do laboratório de análises e há um problema com o seu sangue.- a voz era trémula e seca - vai ter de ir ao hospital para levar uma transfusão.

- Mas vou e volto, não é? - pergunto com esperança quase nula.

- Talvez. Mas pode ter de ficar internada.

- Mas levo a transfusão e fico bem... - insisto.

- Fica melhor… - a resposta é fechada. A conversa tem de acabar ali. Não há mais nada que queira dizer-me.

De olhos num papel, rabisca-o nervosamente.

Chego ao hospital e descubro que conheço o médico que chefia a urgência. Sorte? Eu não acredito na sorte.

Estarrecidas a olhar para as minhas análises, duas jovens médicas não querem crer que eu tenha trabalhado todo o dia.

- Ímpossível! - alegam elas - com estes valores é impossível!Nem se aguentava em pé!

Mas aguentei todo o dia. Por isso estou cansada. Mas bem disposta, de qualquer forma.

- Então estou no Serviço de Urgência e o George Clooney não está cá? - brinco eu com as Paulas que entretanto tinham corrido para o hospital: A "minha" Paula e a outra Paula, amiga, funcionária do hospital.

Como me dizem que tenho que ficar por lá, o João leva a Joana para casa e promete voltar amanhã. A Joana chora e o pai esforça-se por manter o sorriso.

As Paulas ficam até à meia-noite. Rimos todo o tempo dizendo todo o tipo de disparates. Provavelmente para espantar os maus pensamentos.

Por fim, por lá fico sozinha, numa maca no corredor da urgência. Que tinha muita pena, dizia o Dr. Henrique, mas que por muito que fizesse não me conseguia encontrar cama em lado algum. Paciência. Fico ali encostadita à parede, tentando passar desperciba a todos e a tudo, até à doença. Atrás de mim um velhinho geme sem parar. Tem dores. Que Deus o ajude. E a mim também. Afinal não sei ainda o que é que tenho. Desconfio apenas. Há ainda a possibilidade de ser uma "coisa" bacteriana, mas pode não ser. Se não for, "temos de ir para o IPO", diz-me o médico de olhos baixos.

A palavra “Leucemia” dança no interior da minha cabeça. Começa a ganhar espaço. Espaço que eu não lhe quero dar. Mas mesmo que seja leucemia, há-de haver algo que se possa fazer. A medicina evoluiu tanto. Já andei a ler sobre o assunto.
Enfim, Deus há-de dar-me a Sua mão, como sempre. Logo se verá.

Assim que me põem a transfusão a correr (que aspecto estranho tem aquele líquido espesso e escuro) decido que o melhor é aproveitar para tentar descansar. Acabo por dormir.
Não sei quanto tempo passou, mas acordo repentinamente com muito frio. Parece que de súbito acordei na Antártida. Não consigo parar de tremer e não consigo parar de dizer que tenho muito frio. Não sei o que se passa, mas não é bom. Muita gente à minha volta. Muitas ordens de uns para os outros. Parece que estou num navio. Parece que vou naufragar.

Uma médica de cor, que provavelmente nunca mais verei, suplica-me que fique quieta para poder enfiar uma agulha na veia da minha mão. Mas é impossível parar de tremer. Não tenho qualquer controlo sobre o meu corpo. Apagam-se as luzes. Apaga-se tudo. O sossego finalmente.

É curioso pensar como a partir daqui há momentos que o mundo viveu e eu não. É como se tivesse saído do planeta por alguns momentos (minutos, horas, dias) e voltado depois.Tenho acabado sempre por voltar.

Ainda sinto a mão do médico pegando na minha e com um ar mais compassivo do que profissional dizendo: "Abigail, temos de ir para o IPO!" De imediato lhe respondo: "Então vamos para o IPO".Sem perguntas, sem porquês, sem dúvidas. Como se há muito tempo esperasse que alguém me dissesse com aquele ar de inevitabilidade "tens de ir para o IPO".

Digo-vos uma coisa, por muito confuso e aflitivo que vos pareça a sirene de uma ambulância que passa, é mil vezes pior se somos nós que estamos lá dentro. A perspectiva do tecto metálico e branco, a velocidade da paisagem que passa pela nesga de janela que consigo ver deitada na maca, a cadência do som estridente da sirene... Se eu tivesse dúvidas... Estou viva. Todos os meus sentidos estão a ser violentamente atacados. Estou viva. Graças a Deus. Quero continuar assim.

A médica e a enfermeira que me acompanham, não escondem a preocupação com a possibilidade de uma falha respiratória, ou cardíaca.

"-Não fale, Abigail. Não deve falar." - susurra a médica, quase a medo.

Por favor não me mandem calar. É a única maneira de eu própria saber que ainda estou em contacto com o mundo à minha volta. Não me peçam para não falar.

Sempre tive pavor de andar de avião... até ter viajado na maca de uma ambulância.

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