"É impossível alguém estar mais cansada do que eu estou. Sinto-me doente. DOENTE. Seja o que for, parece-me estar no limite. Não sei quanto tempo mais me aguento."
Penso eu assim enquanto me preparo para dormir. Fazer alguma coisa, nem que seja ver televisão é completamente impensável.
Dormir. Só me apetece dormir. Muito.
Batem à porta e eu não quero ver ninguém. O João diz-me que é o Dr. Miguel. Levanto-me da cama e arrasto-me até à sala onde o encontro pálido e visivelmente nervoso.
- Abigail, telefonaram-me do laboratório de análises e há um problema com o seu sangue.- a voz era trémula e seca - vai ter de ir ao hospital para levar uma transfusão.
- Mas vou e volto, não é? - pergunto com esperança quase nula.
- Talvez. Mas pode ter de ficar internada.
- Mas levo a transfusão e fico bem... - insisto.
- Fica melhor… - a resposta é fechada. A conversa tem de acabar ali. Não há mais nada que queira dizer-me.
De olhos num papel, rabisca-o nervosamente.
Chego ao hospital e descubro que conheço o médico que chefia a urgência. Sorte? Eu não acredito na sorte.
Estarrecidas a olhar para as minhas análises, duas jovens médicas não querem crer que eu tenha trabalhado todo o dia.
- Ímpossível! - alegam elas - com estes valores é impossível!Nem se aguentava em pé!
Mas aguentei todo o dia. Por isso estou cansada. Mas bem disposta, de qualquer forma.
- Então estou no Serviço de Urgência e o George Clooney não está cá? - brinco eu com as Paulas que entretanto tinham corrido para o hospital: A "minha" Paula e a outra Paula, amiga, funcionária do hospital.
Como me dizem que tenho que ficar por lá, o João leva a Joana para casa e promete voltar amanhã. A Joana chora e o pai esforça-se por manter o sorriso.
As Paulas ficam até à meia-noite. Rimos todo o tempo dizendo todo o tipo de disparates. Provavelmente para espantar os maus pensamentos.
Por fim, por lá fico sozinha, numa maca no corredor da urgência. Que tinha muita pena, dizia o Dr. Henrique, mas que por muito que fizesse não me conseguia encontrar cama em lado algum. Paciência. Fico ali encostadita à parede, tentando passar desperciba a todos e a tudo, até à doença. Atrás de mim um velhinho geme sem parar. Tem dores. Que Deus o ajude. E a mim também. Afinal não sei ainda o que é que tenho. Desconfio apenas. Há ainda a possibilidade de ser uma "coisa" bacteriana, mas pode não ser. Se não for, "temos de ir para o IPO", diz-me o médico de olhos baixos.
A palavra “Leucemia” dança no interior da minha cabeça. Começa a ganhar espaço. Espaço que eu não lhe quero dar. Mas mesmo que seja leucemia, há-de haver algo que se possa fazer. A medicina evoluiu tanto. Já andei a ler sobre o assunto.
Enfim, Deus há-de dar-me a Sua mão, como sempre. Logo se verá.
Enfim, Deus há-de dar-me a Sua mão, como sempre. Logo se verá.
Assim que me põem a transfusão a correr (que aspecto estranho tem aquele líquido espesso e escuro) decido que o melhor é aproveitar para tentar descansar. Acabo por dormir.
Não sei quanto tempo passou, mas acordo repentinamente com muito frio. Parece que de súbito acordei na Antártida. Não consigo parar de tremer e não consigo parar de dizer que tenho muito frio. Não sei o que se passa, mas não é bom. Muita gente à minha volta. Muitas ordens de uns para os outros. Parece que estou num navio. Parece que vou naufragar.
Não sei quanto tempo passou, mas acordo repentinamente com muito frio. Parece que de súbito acordei na Antártida. Não consigo parar de tremer e não consigo parar de dizer que tenho muito frio. Não sei o que se passa, mas não é bom. Muita gente à minha volta. Muitas ordens de uns para os outros. Parece que estou num navio. Parece que vou naufragar.
Uma médica de cor, que provavelmente nunca mais verei, suplica-me que fique quieta para poder enfiar uma agulha na veia da minha mão. Mas é impossível parar de tremer. Não tenho qualquer controlo sobre o meu corpo. Apagam-se as luzes. Apaga-se tudo. O sossego finalmente.
É curioso pensar como a partir daqui há momentos que o mundo viveu e eu não. É como se tivesse saído do planeta por alguns momentos (minutos, horas, dias) e voltado depois.Tenho acabado sempre por voltar.
Ainda sinto a mão do médico pegando na minha e com um ar mais compassivo do que profissional dizendo: "Abigail, temos de ir para o IPO!" De imediato lhe respondo: "Então vamos para o IPO".Sem perguntas, sem porquês, sem dúvidas. Como se há muito tempo esperasse que alguém me dissesse com aquele ar de inevitabilidade "tens de ir para o IPO".
Digo-vos uma coisa, por muito confuso e aflitivo que vos pareça a sirene de uma ambulância que passa, é mil vezes pior se somos nós que estamos lá dentro. A perspectiva do tecto metálico e branco, a velocidade da paisagem que passa pela nesga de janela que consigo ver deitada na maca, a cadência do som estridente da sirene... Se eu tivesse dúvidas... Estou viva. Todos os meus sentidos estão a ser violentamente atacados. Estou viva. Graças a Deus. Quero continuar assim.
A médica e a enfermeira que me acompanham, não escondem a preocupação com a possibilidade de uma falha respiratória, ou cardíaca.
"-Não fale, Abigail. Não deve falar." - susurra a médica, quase a medo.
Por favor não me mandem calar. É a única maneira de eu própria saber que ainda estou em contacto com o mundo à minha volta. Não me peçam para não falar.
Sempre tive pavor de andar de avião... até ter viajado na maca de uma ambulância.
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