Só sei que é Sexta-feira


Depois de tantos dias com aquela bendita máscara, passo para outra cama. Devo estar melhor. Já não estou sozinha num quarto.

Parece que sou a única pessoa consciente na UCI. Pelo menos eu acho que estou consciente, mas não tenho a certeza se essa é a opinião geral.

Tenho fome. Tenho sempre fome.

Aborrecem-me estas crostas no nariz que já duram desde que cá cheguei. Não mas podem tirar. Se sangram, não tenho plaquetas para parar a hemorragia.

Preciso escrever. Peço umas folhas de papel ao enfermeiro e uma caneta. Tenho de registar esta aventura. Então vamos lá.


"Já fui banhada, escovada, penteada e vestida de lavado. Já descobri como é que conseguem mudar os lençóis da cama sem me tirarem de lá. Fantástica técnica.

Ao almoço comi uma truta e meia (não confundir com tuta e meia) grelhada com batatas cozidas e couves de bruxelas. Sobremesa: gelatina. Fiquei bem."

a seguir à Sexta é Sábado não é?


"Hoje acordei muito melhor (quem diria).

Já não me custa tanto respirar. Já consigo respirar fundo algumas vezes sem tossir nem deitar sangue.

O dia hoje está mais calmo; deve ser por ser Sábado. Ou será por causa das drogas todas que entram pelos três tubos que tenho no meu ombro. Tenho muito sono."

em algum dia depois de 23 de Setembro 2005


Não sei que dia é hoje.

Se é de manhã, ou de noite.

Não me lembro do tempo que passou desde que cá cheguei.

Só me lembro do sorriso de um anjo vestido de médico. Pedindo desculpa (ele sempre pede desculpa), perfura o meu esterno para chegar à medula e tirar uma amostra. Não sei se me dói. Não tenho noção.

Deste dia, na UCI, só me lembro daquele largo sorriso, das palavas serenas que me diz e me faz confiar nele, até hoje.

Tenho tubos a sair do meu ombro, cosidos na minha pele, perfurando a minha carne. Há vários líquidos que entram em mim através deles.

Não consigo respirar. Tento respirar fundo, mas não há espaço para o ar nos meus pulmões.

- Tente respirar mais devagar e mais fundo, Abigail - pede uma médica simpática.

Não consigo. Quero conseguir, mas não me é possível fazê-lo.

A solução é uma máscara que tapa herméticamente a minha boca e o meu nariz e que "empurra" oxigénio para dentro dos meus pulmões.

Faz um pouco de impressão no início, mas depois sabe bem.

Apercebo-me que o oxigénio faz secar a boca. Preciso de beber água muitas vezes. Para isso tiram um pouquinho a máscara e dão-me água por uma palhinha. Assim fico melhor.

Não sei quantos dias estou assim. Mas reconheço as minhas poucas visitas. Mas também quem quer ver alguém naquele estado?

O meu filho vem e dá-me a mão protegida por uma luva esterlizada. Não consegue não chorar e eu quero dizer-lhe que se acalme que vai correr tudo bem, mas não posso falar.

O João vem depois. Tenta ser forte, mas as lágrimas são mais pesadas.

A Emília, a minha querida Emília chora copiosamente.

Parte-se-me o coração vê-los naquele estado. Alguém lhes deve ter dito que eu estava muito mal. Será que é verdade? Não me sinto ansiosa. Aliás, estou estranhamente calma.

Muitas vezes perco noção do tempo e da realidade também. Só não perco a esperança.

22 de Setembro de 2005


É muito estranho ver o céu deitada numa maca que é empurrada rapidamente num movimento trepidantemente incómodo.
Um elevador grande e metálico leva-me para algum lado.
Só meses depois soube que entrei pelo Piso V, a minha nova casa.

O meu telemóvel? Onde está o meu telemóvel? Por favor, não me cortem a ligação com o mundo. "Eu guardo o telemóvel comigo, não se preocupe. Agora descanse" Diz-me a enfermeira Virgínia. Os seus caracóis emolduram uma face amistosa, alegre e serena. Uma amiga?
"Temos que a pôr na cama"- ouvi."Não é preciso, eu passo para lá". Para espanto de todos eu gatinho literalmente da maca para a cama perante os protestos de toda a gente. Que não era permitido, que não posso fazer esforços, que tenho de descansar. Vou ter muito tempo para descansar.
Outra vez o elevador. O som e a cor metálicos. Inesquecíveis.
O impacto da chegada à UCI é no mínimo aparatoso.Tantos médicos e enfermeiras. Tantas caras fechadas, susurros, palavras que não entendo. Trocas de olhares que eu não quero entender.Mexem-me e tornam a mexer-me. nem sei onde me tocam. Acho que me tocam por todo o lado. São agulhas, estetoscópios, tubos e aparelhos que medem tudo e mais alguma coisa.
Respirar é difícil. Muito difícil. Não sei se vou conseguir manter este esforço por muito tempo.
Finalmente um sorriso. Uma cara mesmo por cima da minha, ri para mim e conta-me uma anedota. Mesmo com dificuldae em respirar, não consigo deixar de rir. Reparo então, que só nós os dois nos rimos.
No quarto de isolamento dos cuidados intensivos do IPO tudo o que se passa é sobre mim. É óbvio que é muito sério. Há uma grande possibilidade de a minha vida acabar aqui. Eu sinto que estou mal, mas não acho que vou morrer. Ainda não.
Um anjo fez-me rir. Cuidou de mim. Interessou-se por mim. Sobretudo, não desistiu de mim. Um anjo em forma de médico.

21 de Setembro de 2005


"É impossível alguém estar mais cansada do que eu estou. Sinto-me doente. DOENTE. Seja o que for, parece-me estar no limite. Não sei quanto tempo mais me aguento."

Penso eu assim enquanto me preparo para dormir. Fazer alguma coisa, nem que seja ver televisão é completamente impensável.

Dormir. Só me apetece dormir. Muito.

Batem à porta e eu não quero ver ninguém. O João diz-me que é o Dr. Miguel. Levanto-me da cama e arrasto-me até à sala onde o encontro pálido e visivelmente nervoso.

- Abigail, telefonaram-me do laboratório de análises e há um problema com o seu sangue.- a voz era trémula e seca - vai ter de ir ao hospital para levar uma transfusão.

- Mas vou e volto, não é? - pergunto com esperança quase nula.

- Talvez. Mas pode ter de ficar internada.

- Mas levo a transfusão e fico bem... - insisto.

- Fica melhor… - a resposta é fechada. A conversa tem de acabar ali. Não há mais nada que queira dizer-me.

De olhos num papel, rabisca-o nervosamente.

Chego ao hospital e descubro que conheço o médico que chefia a urgência. Sorte? Eu não acredito na sorte.

Estarrecidas a olhar para as minhas análises, duas jovens médicas não querem crer que eu tenha trabalhado todo o dia.

- Ímpossível! - alegam elas - com estes valores é impossível!Nem se aguentava em pé!

Mas aguentei todo o dia. Por isso estou cansada. Mas bem disposta, de qualquer forma.

- Então estou no Serviço de Urgência e o George Clooney não está cá? - brinco eu com as Paulas que entretanto tinham corrido para o hospital: A "minha" Paula e a outra Paula, amiga, funcionária do hospital.

Como me dizem que tenho que ficar por lá, o João leva a Joana para casa e promete voltar amanhã. A Joana chora e o pai esforça-se por manter o sorriso.

As Paulas ficam até à meia-noite. Rimos todo o tempo dizendo todo o tipo de disparates. Provavelmente para espantar os maus pensamentos.

Por fim, por lá fico sozinha, numa maca no corredor da urgência. Que tinha muita pena, dizia o Dr. Henrique, mas que por muito que fizesse não me conseguia encontrar cama em lado algum. Paciência. Fico ali encostadita à parede, tentando passar desperciba a todos e a tudo, até à doença. Atrás de mim um velhinho geme sem parar. Tem dores. Que Deus o ajude. E a mim também. Afinal não sei ainda o que é que tenho. Desconfio apenas. Há ainda a possibilidade de ser uma "coisa" bacteriana, mas pode não ser. Se não for, "temos de ir para o IPO", diz-me o médico de olhos baixos.

A palavra “Leucemia” dança no interior da minha cabeça. Começa a ganhar espaço. Espaço que eu não lhe quero dar. Mas mesmo que seja leucemia, há-de haver algo que se possa fazer. A medicina evoluiu tanto. Já andei a ler sobre o assunto.
Enfim, Deus há-de dar-me a Sua mão, como sempre. Logo se verá.

Assim que me põem a transfusão a correr (que aspecto estranho tem aquele líquido espesso e escuro) decido que o melhor é aproveitar para tentar descansar. Acabo por dormir.
Não sei quanto tempo passou, mas acordo repentinamente com muito frio. Parece que de súbito acordei na Antártida. Não consigo parar de tremer e não consigo parar de dizer que tenho muito frio. Não sei o que se passa, mas não é bom. Muita gente à minha volta. Muitas ordens de uns para os outros. Parece que estou num navio. Parece que vou naufragar.

Uma médica de cor, que provavelmente nunca mais verei, suplica-me que fique quieta para poder enfiar uma agulha na veia da minha mão. Mas é impossível parar de tremer. Não tenho qualquer controlo sobre o meu corpo. Apagam-se as luzes. Apaga-se tudo. O sossego finalmente.

É curioso pensar como a partir daqui há momentos que o mundo viveu e eu não. É como se tivesse saído do planeta por alguns momentos (minutos, horas, dias) e voltado depois.Tenho acabado sempre por voltar.

Ainda sinto a mão do médico pegando na minha e com um ar mais compassivo do que profissional dizendo: "Abigail, temos de ir para o IPO!" De imediato lhe respondo: "Então vamos para o IPO".Sem perguntas, sem porquês, sem dúvidas. Como se há muito tempo esperasse que alguém me dissesse com aquele ar de inevitabilidade "tens de ir para o IPO".

Digo-vos uma coisa, por muito confuso e aflitivo que vos pareça a sirene de uma ambulância que passa, é mil vezes pior se somos nós que estamos lá dentro. A perspectiva do tecto metálico e branco, a velocidade da paisagem que passa pela nesga de janela que consigo ver deitada na maca, a cadência do som estridente da sirene... Se eu tivesse dúvidas... Estou viva. Todos os meus sentidos estão a ser violentamente atacados. Estou viva. Graças a Deus. Quero continuar assim.

A médica e a enfermeira que me acompanham, não escondem a preocupação com a possibilidade de uma falha respiratória, ou cardíaca.

"-Não fale, Abigail. Não deve falar." - susurra a médica, quase a medo.

Por favor não me mandem calar. É a única maneira de eu própria saber que ainda estou em contacto com o mundo à minha volta. Não me peçam para não falar.

Sempre tive pavor de andar de avião... até ter viajado na maca de uma ambulância.

Hoje decidi...





Segunda-feira, 25 de Fevereiro de 2008


...começar a transcrever aqui as folhas do diário que escrevi durante a minha leucemia.


Não foi uma decisão fácil, só pela razão de que não o queria fazer de cabeça quente. Quis deixar passar algum tempo. Amadurecer a ideia. Criar algum afastamento emocional daqueles dias, daqueles meses. Queria poder ser mais objectiva e assim fazer mais sentido para quem quer que se possa interessar pelo que uma simples pessoazinha (literalmente) como eu tenha sentido ou pensado enquanto passou por uma das mais significativas experiências da sua vida.


Parece-me que chegou o tempo. Tempo de partilhar.


Hoje decidi. Está decidido.



Até já!!