10 de Outubro - dia da libertação

Depois do dia de ontem, hoje acordei muito bem.

Nada de enjôos, de calafrios ou de tremeliques.

Bye-bye depressão. Estou de volta e quero ir a casa.

Depois da visita desta manhã (um pouco mais furtiva que o habitual) o Dr.Ângelo foi para as consultas e ainda não voltou para me dar alta.

São 2 horas da tarde, estou impaciente e ainda não sei se vou ou não.

Pedi ao João para esperar (ele costuma ficar aqui durante a hora do almoço) para me poder levar e não ter de voltar cá mais tarde.

...

O tempo passa e nada de Dr. Ângelo. A enfermeira Virgínia disse que vai tentar falar com ele por telefone.

Estou ainda de pijama. Só posso vestir a minha roupa depois de ter a certeza que vou embora. Entretanto o João tem mesmo de ir. Estou bastante ansiosa. Sinto-me como um passarinho á espera que abram a porta da gaiola.

...

São 4 horas da tarde e finalmente vejo o Dr. Ângelo chegando. Sorri e pergunta: "Então eu não disse que ia hoje a casa?" Se eu não gostasse tanto deste médico e tivesse forças, acho que o estrangulava aqui mesmo e agora.

Não há tempo a perder: telefonar ao João -"Vem depressa, não vá alguém mudar de ideias!"- receber instruções valiosíssimas quanto ao que fazer em casa - mais propriamente, quanto ao que NÃO fazer em casa - receber medicação, etc., etc.

Nem quero perder tempo a vestir-me. Vou mesmo de pijama e roupão. Entramos pela garagem.

"Por favor, João, tira-me daqui depressa"

Mas quem foi que disse que eu consigo subir 4 degraus sozinha e depressa? Onde estão as minhas pernas? Estas não são minhas. Não me obedecem!! Socorro!

Pequena (grande!) viagem no elevador.

A minha casa finalmente. Obrigada, meu Deus!

O nosso cheiro traz-me todas as recordações. Duas lágrimas de alegria teimam em rolar cara abaixo. O meu sofá.

Aqui eu sou mais eu. Aqui já existe nós outra vez.

Esteve quase, quase


Já há alguns dias que o médico me começou a meter minhoquinhas na cabeça, dizendo-me que talvez pudessemos começar a pensar em deixar-me ir a casa uns diazitos.

Ora isto é como dizer a quem atravessa o deserto: "Talvez amanhã se possa beber um golito de água!"

E uma mulher não é de ferro, certo?

Olha! Entuiasmei-me! E então? Estava mesmo a contar com isso.

Mas acordei um pouco enjoadita. Só um pouquinho!

Resultado: "D.Abigail, não posso deixá-la ir a casa assim."

O QUÊ?

Assim, sem mostrar qualquer misericórdia, tirou-me o copo de água quando nem uma gota ainda tinha provado. Não é justo.

Ah! Que se eu estou enjoada é porque alguma coisa se passa e têm de ter a certeza do que é para poder saber se é seguro ir a casa.

Nem acredito. Agora sim, começo a sentir-me mal. Tenho frio. Muito frio. Estou a tremer, estou enjoada, chego mesmo a vomitar.

É definitivo: não vou a casa.
É definitivo: estou deprimida!!!!

Mais medicação, mais análises, medição de temperatura, de tensão arterial. Pulso acelerado. Calafrios.

Ok. Tudo concentrado num dia só. Santa paciência. Eram só 3 diazitos. E nem sequer fui eu que tive a ideia.

Estou tão carente que até pedi à minha tia para me dar a sopa do almoço. E à noite, o João acabou por ficar comigo até à meia-noite, ou seja até eu adormecer.

Também tenho direito a um dia menos bom, ou não?

Bip Bip


Já há alguns dias que estou de volta ao Piso V. Espero ter deixado a UCI de vez.

Estou, em isolamento, no quarto 17. É um quartinho agradável, com uma grande janela (que como todas as outras, tem de estar sempre bem fechada). Tem um sofá e uma mesa redonda. É quase uma suite.

Não faço ideia do aspecto do hospital para lá daquela porta. As poucas vezes que saio daqui vou de maca e só vejo tectos e luzes. Pouco mais.

Mas consigo ouvir os sons. Parece-me que oiço muito perto, um patamar de escada onde pessoas entram e saiem e conversam. Oiço a esfregona da senhora da limpeza que tilinta metalicamente num ritmo certinho como um relógio. Oiço passos. Oiço tosse. Oiço gente a gemer e gente a vomitar.

E oiço "bips", muitos "bips" das máquinas todas. Das minhas e das dos outros doentes. Até sonho com estes sons. É como se fossem mais um órgão meu que se manifesta exteriormente.

Hoje é feriado e há menos movimento.

Como é possível que, do lado de fora daquela janela, o mundo continue com a sua rotina exactamente igual? Inacreditável! Quando tanta coisa mudou...

...no dia seguinte...

"-Abigail! Estive a pensar melhor e acho que deve voltar para a UCI.
O meu médico é assim: decidido e resoluto. Entra-me de rompante no quarto (o tal com vista para o mar) e avisa-me que vou voltar para os cuidados intensivos.
- Porquê? - perguntei eu.
- Porque acho que está lá melhor. É mais seguro.
Resolveu, está resolvido. E lá vou eu de volta. Nem aqueci o lugar.
Como na UCI todos os outros doentes estão incoscientes (em coma ou sedados) eu sou a rainha em terra de cegos. Até tenho direito a televisão só para mim.
É incrível como parece ser tão normal, estar sempre deitada, tomar banho na cama, viver com tubos metidos no meu corpo, usar fralda, não poder lavar os dentes normalmente ou ir à casa de banho. Acho que o que sinto é que sou muito abençoada porque, com todos os problemas que tenho, eu podia estar nesta cama também eu inconsciente. Tudo o que me faça sentir viva sabe bem. Mesmo que seja olhar-me no espelho e não reconhecer a minha cor ou a minha forma."

.... Outubro de 2005

"É curioso! Tenho estado sempre consciente, mas não consigo lembrar-me da maior parte do que acontece á minha volta.
O médico diz que estou "em transe". Está a brincar, mas parece-me que tem alguma razão.
Já saí dos cuidados intensivos e meteram-me num quartinho claustrofóbico do Piso V. O quarto 20. O Dr. Ângelo diz que tem vista para o mar (brincalhão), mas eu nem uma gaivota consigo ver.
O quarto é muito pequeno e muito quente também. Não gosto muito de estar aqui.
Antes de sair de lá tiraram-me o catéter arterial. Ninguém conseguia parar a hemorragia. Foram tentativas em cima de tentativas e nada. Acho que quase todo o pessoal do Piso V tentou. O Dr. Herlander resolveu sentar-se na beira da minha cama e ficar a conversar comigo enquanto pressionava com muita força o meu pulso. Finalmente, passados largos minutos, o sangue parou de correr. Aleluia!!
As visitas dos amigos e clientes não param. Até já chamaram o João para lhe dizer que a visitas têm de abrandar. Não imaginava que era tão importante assim para tanta gente."

Domingo, 2 de Outubro de 2005

"Esta noite tive um destes pesadelos...
Sonhei que conduzindo uma carripana velha (não que eu já tenha conduzido alguma nova) ia levando daqui do hospital, a "casa cor-de-rosa", todos os doentes que conseguia e libertava-os longe daqui, para sua imensa alegria. Era um acto solidário de libertação em massa...
Ora, a bem da verdade, tal acção transformou-se, é claro, em perseguição e assumia todos os tons burlescos de perfeito filme de Buster Keaton. Por isso, havia pancadaria, fugas e perseguições, enfim, tudo muito estranho!!
Não é pois de admirar que ao acordar me sinta tão cansada, tal foi a minha aventura nocturna."